O trabalho com Alfabetização atravessa o cotidiano da Educação Infantil e compõe parte significativa de nossa reflexão e ação dentro da Escola.
O texto “Alfabetização: práticas de leitura e escrita na Escola Parque” nasceu a partir da organização de uma reunião sobre o tema para as famílias de nossos alunos, em especial aqueles a partir dos 5 anos, quando a compreensão e uso do sistema alfabético de escrita se tornam mais latentes / cobrados / ansiados pelos pais.
Tendo sido essa a sua origem, cabe já pontuar que não se pretende um texto exclusivamente teórico, mas uma compilação de nossas práticas e ações cotidianas, alicerçadas e fundamentadas em escritos de autores, como Emilia Ferreiro, Ana Teberosky, Delia Lerner, entre outros. Ousados, como somos, poderíamos dizer que o texto pretende um exercício de compartilhamento de ações e pressupostos de trabalho, que compõem nossa práxis.
Estruturamos nossa reunião a partir de três questões recorrentes nos encontros diversos que temos com as famílias de filhos dessa faixa etária: 1) Como atendemos à diversidade que existe dentro de um grupo-turma?; 2)Meu filho ainda não sabe ler ou escrever. Como fará os deveres de casa?; 3)Meu filho já sabe ler e escrever. Quais são seus desafios a partir de então?
Temos consciência de que não é possível cobrir num texto toda a riqueza e diversidade de situações e experiências vividas nessa etapa da escolaridade, mas procuramos partir da necessidade que nos parece mais premente aos familiares que começam a ter contato com a estruturação do sistema alfabético pelas crianças.
Vale sinalizar que esse foi um texto escrito a muitas mãos, reunindo contribuições dos Professores e das Equipes de Orientação das duas unidades da Escola – Barra e Gávea – o que, particularmente, nos enche de orgulho e dimensiona o quanto nosso trabalho de alfabetização se materializa num processo da equipe de trabalho e não somente da professora que estiver regente numa turma de 1º ano do Ensino Fundamental.
Como atender à diversidade?
A Escola, tal qual foi organizada na Modernidade, baseada no pensamento cartesiano, dividiu as crianças por séries, instituiu a aprendizagem em tempos de aula, separou as áreas de conhecimento em disciplinas específicas. Isso levou à construção da ideia de que uma turma formada com crianças de mesma faixa etária traria homogeneidade entre os sujeitos e, portanto, às situações de ensino-aprendizagem. Ao contrário dessa lógica, na Escola Parque, temos convicção de que não existe grupo homogêneo, não há turma em que TODOS estejam na mesma situação de aprendizagem, ainda que os alunos sejam da mesma faixa etária. Entendemos que a diversidade faz parte do dia a dia e ela nos complementa, nos enriquece.
Para atender à diversidade, que se impõe na sala de aula, antes de qualquer coisa o professor precisa conhecer o seu grupo de alunos coletiva e individualmente. Como forma de organizar o olhar do adulto e sua intencionalidade no processo de conhecimento do grupo, lança mão de pautas de observação1 . A partir da realização de atividades específicas (como registros escritos diversos, individuais ou em grupo) e da observação de momentos cotidianos (como brincadeiras entre as crianças), os professores vão conseguindo compreender em quais hipóteses do processo de aquisição de leitura e escrita2 as crianças se encontram.
A partir do levantamento das hipóteses, pensamos nos diferentes agrupamentos de alunos para a realização das atividades. Esses agrupamentos visam a promover a discussão com os colegas e a reflexão de cada um durante o trabalho e, com isso, seu avanço. Embora o trabalho aconteça de maneira coletiva, as diferentes configurações de agrupamento (duplas, trios, grupos) permitem que cada criança esteja trabalhando de acordo com a necessidade de desafio que demanda.
É esperado, nesse processo de Alfabetização, que as crianças, ao invés de serem alvos passivos de algum método, passem a compreender o sistema de escrita – registrando o que desejam comunicar e fazendo uso de todas as letras que compõem as palavras (escrevendo de acordo com a hipótese alfabética), ainda que cometendo equívocos ortográficos – até o final do 1º ano do Ensino Fundamental.
Meu filho ainda não sabe ler e escrever. Como fará os deveres de casa?
Um desdobramento do trabalho realizado na Escola, acompanhado minuciosamente pelo 1 Fazemos uso de pautas de observação com diferentes finalidades, não apenas para conhecer melhor o grupo nas questões que envolvem leitura e escrita. 2 Para saber mais profundamente sobre as hipóteses de escrita, indicamos a leitura da obra A psicogênese da língua escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky. professor, envolve o fomento da produção autônoma pelas crianças. Autonomia compreendida aqui como habilidade em construção, ainda demandando a tutela do adulto. Assim, na Escola, há propostas de trabalhos diferentes, que acontecem simultaneamente (trabalho diversificado), em que há, por exemplo, agrupamentos produzindo com interferência direta do professor, enquanto outros trabalham com autonomia e apoio dos pares. Há, ainda, outra forma importante de encorajar essa autonomia: as tarefas de casa. Na Escola Parque, os alunos têm tarefas de casa a partir do G5, de 1 a 2 vezes na semana, enquanto os alunos do 1º ano levam tarefas de 2 a 5 vezes na semana.
Cotidianamente, nos deparamos com diferentes questões que se relacionam com as tarefas de casa, especialmente com o conceito que temos desse tipo de atividade. São questões-chave para o entendimento das funções que as tarefas de casa devem desempenhar na formação de nossos alunos, considerando que elas se envolvem com instâncias e responsabilidades distintas da CRIANÇA, da FAMÍLIA e da ESCOLA. As tarefas de casa despertam sentimentos diferentes e distintas significações em cada uma dessas instâncias, para as quais também temos pressupostos distintos.
CRIANÇA
Partimos do pressuposto de que as crianças que ainda não leem convencionalmente (ou seja, não estão alfabetizadas) buscam indícios conhecidos que os apoiam a ler o todo e ajudam a atribuir sentido às partes (o que chamamos de índices de leitura). O que isso significa? Nós, adultos, por exemplo, ao aprendermos uma língua estrangeira, muitas vezes não compreendemos todas as palavras escritas num texto que estamos lendo ou todas as palavras que ouvimos quando conversamos com outro falante dessa língua, porém podemos inferir sobre o sentido do que lemos/ouvimos pela interpretação do contexto como um todo. Ou, ainda, quando viajamos para um local cuja língua desconhecemos, somos capazes de levantar hipóteses sobre o que vemos escrito em outdoors, cardápios etc., lançando mão de conhecimentos prévios, que nos auxiliam como índices na leitura desse texto desconhecido.
Assim, o fato de nossos alunos ainda não compreenderem o sistema alfabético de escrita, nem serem leitores convencionais, não os impossibilita de realizar tarefas em casa. Dentro dessa lógica, trazemos como proposta tarefas de casa contextualizadas, com temas significativos para o grupo, conversamos sempre sobre as tarefas que estão sendo levadas e procuramos organizar índices que os apoiem, em casa, na leitura autônoma que, muitas vezes, se limita à memória do que foi falado na Escola.
Diferente do que aprendemos tradicionalmente, na Escola Parque o “erro” não é entendido como algo negativo. Ele é parte importante do processo produtivo do aluno e material a partir do qual o professor pensa em atividades específicas para desestabilizar hipóteses de alfabetização. Ao ser questionada sobre sua produção, a criança reflete, busca alternativas e, ao validar, ou não, suas hipóteses, vai avançando no processo de construção da escrita alfabética. Não existe erro, conceitualmente falando, se estamos no processo de aquisição do sistema alfabético, se o exercício que trazemos aos alunos se dá justamente na reflexão sobre a escrita, que eles ainda não dominam.
Se a criança que, sabidamente, não está na hipótese alfabética e, portanto, ainda está em processo de apropriação do nosso sistema de escrita, é exigida a responder de acordo com a escrita convencional, ela não apenas deixa de pensar sobre o sistema alfabético, deixando, com isso, de levantar hipóteses, testá-las ou confrontá-las, mas também atestamos seu não saber e deixamos de validar suas reflexões. Ela precisa ser autorizada pelos adultos a seu redor a colocar suas hipóteses em prática. Devemos valorizar suas escritas e encorajá-la a seguir refletindo e ousando, registrando, escrevendo.
ESCOLA
Como repetimos bastante até aqui, a escrita da criança reflete a hipótese dela, e o professor cria situações de aprendizagem específicas para que cada uma possa refletir e pensar sobre seu registro, e se o que pensou dá conta de responder ao desafio proposto.
Na sala de aula, há diversas propostas para a reflexão das crianças sobre sua escrita, como confrontar as próprias escritas com os nomes dos colegas de sala (que estão sempre expostos); colocar crianças com hipóteses semelhantes para escreverem em dupla; jogos de leitura, forca, cruzadinhas; trabalho com palavras estáveis (nomes, palavras do planejamento etc.).
Confrontar a escrita da criança com a leitura convencional é uma estratégia importante para desestabilizar a hipótese de escrita. Outra estratégia usada pela Escola nesse processo é o uso de palavras estáveis, palavras escritas convencionalmente e que fazem parte do cotidiano das crianças, como nomes dos colegas de turma, palavras do planejamento – que são registradas todos os dias na sala, palavras que fazem parte de um projeto que vem sendo desenvolvido no grupo. Todas se tornam palavras de referência para serem usadas como base para fazer relações com outras palavras e, portanto, possam ajudá-las a pensar em outras escritas, como, por exemplo, ao refletir sobre o registro da palavra / violão/, uma criança pode procurar alguma palavra registrada na lista de palavras do planejamento para ajudar na escrita do /ão/ e ela buscar, entre as palavras do planejamento, a /Educação Física/. Por isso, é comum que as tarefas de casa envolvam essas palavras.
Entendemos que é na Escola que ocorrem as principais inferências e momentos de reflexão de cada aluno, e julgamos fundamental que ela se materialize num “ambiente alfabetizador”. O espaço da sala de aula deve ser motivador para as práticas comunicativas por meio da leitura e da escrita. Ele precisa ser rico em materiais produzidos pelos alunos e outros relevantes e significativos às suas pesquisas. O que torna a sala de aula um ambiente alfabetizador é o uso que os alunos fazem das escritas e as relações feitas entre os conhecimentos e a função social dos materiais escritos disponíveis.
Os alunos precisam compreender que a escrita e a leitura têm uma função social, cumprindo um importante papel de comunicação. Assim, vão entendendo, mesmo antes de aprenderem a ler e a escrever convencionalmente, que existem diferentes gêneros de escrita, como: jornal, convite, receita, narrativas etc. Conhecer mais sobre a linguagem que se escreve é uma importante conquista para quem está em processo de compreensão do sistema alfabético.
FAMÍLIA
Nesse sentido, compreendemos que a família não deve carregar o peso de sentir-se responsabilizada pelo “ensino” da leitura e da escrita às crianças. O papel da família é possibilitar que a criança viva práticas sociais significativas de leitura e escrita: ler e ouvir histórias por prazer, visitar espaços de leitura (biblioteca da Escola, livrarias, bibliotecas públicas), ler e comentar notícias que interessem à criança; favorecer que a criança participe das situações sociais de escrita, como fazer convites, listas de mercado, ler receitas, folder de cinema/teatro, brincadeiras…
Como já dito anteriormente, as intervenções que vão fazer com que a criança avance em seu processo são de responsabilidade da Escola. Os pais têm o papel de ampliar a relação cotidiana das crianças com a leitura e a escrita, possibilitando à criança o acesso a diversos espaços de ampliação cultural, como teatro, cinema, museus, literatura.
A família também é muito importante no estabelecimento de combinados e organizações, visando a garantir que a criança estabeleça um hábito para fazer o dever, oferecendo um lugar tranquilo, uma rotina/horário, materiais disponíveis, supervisão desse fazer, mas sem que os pais façam pela criança ou assumam a responsabilidade pelo dever. O dever não é uma novidade para ela, costuma ser algo já vivenciado e conhecido em sala.
Ao trazer a tarefa de casa de volta para a Escola, as produções são socializadas. Compartilhamos os caminhos que cada aluno trilhou, reconhecemos semelhanças e diferenças nas produções, ouvimos dificuldades e damos a oportunidade de que troquem entre si suas impressões. Na Educação Infantil, os deveres não são corrigidos, porque entendemos que o erro não se fixa, até porque ele está em processo de transformação constante. Durante a socialização das tarefas, o foco não está no acerto e no erro, mas, sim, no protagonismo vivido no processo de aprendizagem da criança.
Há diferentes formas de socialização dos deveres, situações em que as crianças compartilham suas diferentes soluções aos mesmos problemas; há deveres que servem como disparadores de outras propostas, como jogos e pesquisas; crianças confrontam o que fizeram com as produções de seus colegas. Há importância na responsabilidade da criança ao realizar os deveres, pois há um compromisso dela com a construção do conhecimento coletivo a partir do que cada um traz individualmente.
O compromisso da criança como estudante está em construção, portanto a responsabilidade da família está, sobretudo, em apoiar a realização do dever (estabelecer uma rotina, disponibilizar materiais, garantir um espaço adequado, supervisionar as necessidades), a entrega no dia combinado e o envolvimento e o valor disso tudo para a criança.
Com isso, a família vai além do “acerto e correção” de conteúdos escolares e passa a apoiar a construção de procedimentos de estudante, como a entrega do dever, o uso do uniforme, a leitura do livro da Ciranda3, a participação em eventos que também geram aprendizagens fundamentais para o percurso das crianças como estudantes.
Meu filho já sabe ler e escrever. Quais os desafios para ele agora?
Começar a escrever alfabeticamente, ou seja, usando uma letra para cada som que proferimos, leva a uma nova etapa do trabalho com os alunos, momento de, progressivamente, darmos mais atenção à forma como registramos esses sons. Uma vez lendo e escrevendo alfabeticamente, o aluno deve ser levado a pensar na organização do texto, na distribuição da escrita no papel, nas questões de ortografia, de pontuação e ampliação do texto. O aluno recém-alfabético vai ampliar a compreensão leitora, no contato com textos, pouco a pouco, mais longos e mais complexos; vai ampliar a produção de textos, começando a refletir sobre a substituição de marcas de oralidade.
Desvendar o sistema de escrita não dá por encerradas as aprendizagens relacionadas à apropriação da língua. Ao contrário, amplia o olhar para a forma do texto e para a descoberta de que a língua oral tem diferenças importantes da língua escrita.
Nessa fase, o que se impõe são os desafios ligados a outros aspectos normativos da língua – regras ortográficas e gramaticais, que estão a serviço do propósito comunicativo de seus textos, como comunicar por escrito, de modo que haja compreensão e comunicação para o leitor. Inicia-se, de forma específica, um investimento, cada vez mais aprofundado, nas reflexões sobre aspectos linguísticos em comparação com as marcas de oralidade que, normalmente, aparecem nos textos das crianças. Mas ainda não há um compromisso com a sistematização desses aspectos e regras, o que acontecerá, de acordo com o currículo em espiral, ao longo do Ensino Fundamental 1.
Todas as questões relativas às práticas de leitura e escrita são importantes para nós. Cotidianamente nos deparamos com elas, seja no contato com as famílias, no trabalho com os alunos ou, ainda, mesmo e profundamente, em todas as situações de encontro da equipe.
Estamos sempre revendo nossa prática a partir dos estudos teóricos e das reflexões que fazemos das situações reais que presenciamos no dia a dia de observação das crianças e de seus processos. E estamos certos de que ler e escrever são habilidades que vão muito além de “aprender” que casa se escreve com /s/ e não com /z/.
“Se a escola não alfabetiza para a vida e para o trabalho… Para quem e para que alfabetiza?” Emilia Ferreiro.
Texto escrito pela Equipe da Educação Infantil da Escola Parque. Organização de Célia Flores.
A versão final do texto contou com a colaboração de Patrícia Lins e Silva.